
Se você não emagrecer, ninguém vai te amar
A gordofobia me transformou em intelectual, inteligente, ousada, segura, só não me fez ser amada
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“Se você não emagrecer, ninguém vai te amar”. Essa é uma das frases mais ouvidas por mulheres gordas. Eu, à beira dos 40 anos e de mais um Dia dos Namorados solteira - e solitária - ouso dizer que sim, é verdade.
Dia 12 de junho é quando, no Brasil, comemoramos o Dia dos Namorados. É também a data que Giovana - nome fictício de história contada no podcast "Não Inviabilize" na categoria de s - deu para o namorado que não tem nome no podcast (homens escrotos nunca devem ter, eu adoro), como prazo para que ele assuma o namoro com ela.
Sim, Giovana, assim como eu, é uma mulher gorda. Na história enviada ao podcast, ela narra que até os 26 anos, sob muita terapia e trabalho no amor própria, nunca havia beijado na boca ou se relacionado, até conhecer o fulaninho no ponto de ônibus e engatar uma conversa, que virou um date na casa dele, uma primeira transa e um namoro que já dura mais de ano, mas, somente às escuras, sem que ela conheça os familiares e amigos dele e vice-versa e, ainda, sob ameaças de que, se ela emagrecer, ele larga dela.
O famoso caso do: “minha filha, este homem te odeia”. Odeia e não é pouco. Gosta dela gorda, mas tem vergonha de assumir isso. Quer namorar, mas quer esconder. Mudou o horário de trabalho para não ser visto ao lado dela no ônibus depois que ela tentou segurar na mão dele em público.
A desculpa do namorado é de que ele não se sente bem saindo em público e que, se não está bom para ela, ela pode terminar. Vejam só o nível de escrotidão - mas saibam que a maioria de vocês é assim: supervalorizam os relacionamentos padrãozudos.
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Estou resumindo a história, perdendo as contas de quantas vezes, na minha vida, fui como a Giovana. E fui todas vocês que me leem. E fui eu mesma. E ser uma mulher gorda é estar no topo da rejeição. Distante de um lugar privilegiado na Prateleira do Amor (falo mais adiante), mas destacadas o bastante com um carimbo gigante no corpo: REJEITADA!
Sim, a mulher gorda é, quase sempre, no imaginário, a mal amada. A que, natural - e infelizmente (uso muito travessão, não é Chat GPT) - internalizou tanto a gordofobia que não acreditou ser possível ser amada ou feliz sem um corpo padrão.
E eu venho do lado das pessoas que viveram a vida toda nesta guerra para dizer: ser uma mulher gorda é sim, ser rejeitada. E vão dizer: ora, emagreça. Jura? Nunca tinha pensado nisso! Óbvio que sim. Mas e o direito de ser amada por ser quem se é?
Hoje mesmo, vi um post de um veículo de comunicação dizendo como o filho do comediante Bussunda, e alguns outros homens, estão escanteando o padrão de beleza e sendo amados por quem são. Fiquei pensando no árduo caminho que temos até isso se estender às mulheres - se é que um dia acontecerá. Porque, se de um lado, homens fora do padrão são celebrados, mulheres devem ser cada vez mais submissas, mais “trad wife”, mais donas de casa e menos mulheres mesmo.
E vão dizer: decolonize o olhar, se relacione com outro tipo de pessoas, desfoque das relações monogâmicas com homens cis. E eu responderei: mas é claro que sim. E cadê estas pessoas desejando meu corpo e amando minha personalidade? Assumindo relações comigo? Das sapadrão às pessoas trans, não-binárias, dissidentes de gênero, etc: quem é que assume uma relação de amor com uma mulher gorda?
Tô pagando - literalmente, vejam só - para ver isso acontecer. Ainda não aconteceu. Duvido que acontecerá.
“Ah, mas não desanime. Toda a tem sua tampa”. Desde que esta a seja magra, performe a feminilidade, a submissão e, como diria a psicóloga Valeska Zanello: "dependa da posição na prateleira do amor".
A minha, ao longo de quatro décadas, tem sido a mais baixa, aquém das promoções. Aquela do fundo, o produto esquecido, que ninguém quis. Até sabem ser bom, mas o preço não condiz com a aparência. Tipo a comida de aspecto não tão bonito, mas, gostosa. Porém, quem ousará assumí-la assim, em público, à luz do mercado inteiro, ar no caixa, pagar no PIX, à vista, ou no crédito, parcelada, em dinheiro vivo, como faziam os nossos anteados?
Se minha vida fosse um podcast, duraria bem mais que só 25 minutos de um "Picolé de Limão" e seria daqueles episódios que a Déia Freitas chora no meio, o Coentro Nenê entra no estúdio e chora, o cachorro late, o vizinho grita, o carro do ovo a na rua, junto com o do gás. Uma barulheira só. E seria aquele, justamente aquele, que o Leo esquece de cortar.
É sem cortes. No seco. No duro. No sexo, duro. Na não reciprocidade. Aliás, tem tempos de festas juninas, às vésperas do Santo Antônio do sem número de estátuas do casamenteiro que já roubei e deixei de ponta cabeça no freezer, na carteira, enterrado na terra no quintal de casa, na encruzilhada, jogado por aí: não tem milagre que faça uma mulher gorda, que não performa a feminilidade, careca, ter reciprocidade no amor. Não tem, aliás, maçã do amor colorida, suculenta e deslumbrante sob luzes coloridas que salve a ausência de afeto neste corpo.
No twitter, a psicóloga Thaís Basile falou sobre isso: "Como uma mulher que já esteve alto na prateleira do amor (já fui padrão) e hoje não (engordei 25kg), posso dizer: o tratamento público, a educação muda completamente, principalmente dos homens. As mulheres buscam beleza para serem menos maltratadas, não apenas serem escolhidas.”
Não concordo com tudo, obviamente, porque acredito que as mulheres gordas podem ser bonitas - e são, claro. O que ocorre é que elas estão fora do padrão e ser fora do padrão significa ser feia, automaticamente, ainda que não o sejamos. E ser feita é um aporte para ser maltratada. Para ser achincalhada, para ser montada em rodeios de festas universitárias, para nunca ser assumida. É o ingresso garantido para a relação abusiva. Para a relação do descaso. Para a relação da hierarquia do afeto, onde quem se aproxima mais do padrão eurocêntrico merece mais amor.
Os jantares românticos de 12 de junho foram substituídos por jantares com amigos, igualmente solteiros que, com dó de eu nunca ter tido um date romântico público, me pagam jantares, flores e me dão afeto. Sou muitíssimo grata e, não fosse isso, já teria sucumbido.
Mas, quando falamos de domingo à tarde, filminho junto, andar de mãos dadas na praia em direção ao pôr-do-sol, ter aquele amor de segurar, literalmente a mão um do outro, como meus pais tiveram, isso a mulher gorda não tem. E é uma generalização, eu sei: eu não tenho.
E a Giovana do "Picolé de Limão" também não tem. Ouvindo, mandei uma mensagem no grupo do Telegram sendo gentil com a Giovana. Dizendo que ela merece um amor que a ame. E sabendo que eu também mereço.
Confesso: ouvir o podcast me deu raiva. Não dela. Não da Déia. Nem tanto do cara. De mim mesma. E das situações vexatórias que já me permiti por ser uma mulher gorda em busca de afeto. Sair às escondidas. Ficar em locais escuros e obscuros, para que ninguém veja. Topar encontros em carros, quebradas, construções, porque o cara não acha que você, sendo uma mulher gorda, merece um motel bom, sequer. Topar ser rechaçada publicamente, sair e encontrar o cara que durante a semana te ama no trabalho e, aos finais de semana, namora a mulher magra e padrão e ainda diz: mas você é minha melhor amiga.
Raiva de ser sempre a melhor amiga. De me tornar um “brother de saia”, com quem ele desabafa, ganha um chamego, às vezes, um sexo bom que finjo botar na conta da carência (dele ou minha?) - porque não se enganem, não é difícil ser uma mulher gorda e conseguir sexo, já falei disso algumas vezes nessa coluna, o difícil é conseguir amor, afeto, ser assumida, ser amada publicamente.
O podcast me deu muita raiva. Me fez pensar no quanto a gordofobia me transformou numa stalker e já falei disso aqui também. Me fez pensar no quanto a gordofobia me transformou em alguém que não se acreditou, por muito tempo, digna de ser amada - no fundo, não sei se ainda acredito, sabe? Me fez pensar no quanto a gordofobia me transformou numa pessoa que se contenta com migalhas, que topa encontro às escondidas, que já mentiu em chat de internet, em app de relacionamento, em encontros.
A gordofobia me transformou sempre na melhor amiga, na intelectual que todos amam estar na presença, desde que com outras presenças, ou escondido. A gordofobia me transformou na pessoa desejável o suficiente para que muitos queiram arrancar um pedaço, mas para que pouquíssimos (quem mesmo?) queiram assumir. Me transformou na mulher cuja única declaração recebida é “eu quero lamber seu cérebro” (sim, chegamos no auge da fetichização da intelectualidade gorda, que, por vezes, me soa ainda mais violenta que a do corpo) e não: quero morder sua bunda, sei lá, o equivalente corporal a isso, que objetifica, mas explícita o desejo, porque pior do que ser um ser objetal é ser abjetal. E esse é o lugar das mulheres gordas.
A gordofobia me fez inteligente, engraçada, carismática. Incrível. Só não me fez amada. E o que mais demandamos senão o amor?
Em 1991, o Movimento Negro Unificado (MNU) publicou um jornal cuja capa continha a inscrição "reaja à violência racial". Na foto, uma mulher e um homem negros se beijando com o complemento "beije sua preta em praça pública".
Um dos meus sonhos é lançarmos a campanha: beije sua gorda em praça pública. Assuma seu amor gordo. Demonstre seu afeto. Reaja à violência que aprisiona nossos corpos na falta de amor absoluta nesse 12 de junho. Tô exausta de protagonizar esse Picolé de Limão eterno e azedíssimo.
Claro que a gordofobia também me transformou numa pessoa ácida. Autossuficiente, talvez? Eficiente pra caramba. Trabalhadora. Toda libido investida no trabalho, em projetos maravilhosos, num pensamento hipercrítico, sensível, empático. Sou uma mulher incrível. Mas não sou amorosamente desejada.
Eu queria escrever essa coluna num tom de “se ame e tá tudo resolvido”, mas não tá. Eu me amo. Me acho bonita. Me sinto bonita. Sou desejosa. Sou muito interessante. Mas não sou magra. E nem desejo ser. Sei que as pessoas sentem vergonha de mim. Do meu corpo. Eu sei justamente por isso: porque sou inteligente. Eu percebo os olhares de nojo, o silêncio, a falta de escuta. A falta de empatia.
Queria, sim, encerrar esse texto de maneira alto astral. Já sei que, se eu quiser dançar, tenho que fazer meu próprio baile. Se eu quiser viver, tenho que brigar pra existir. Se eu quiser ser amada, tenho que deixar de ser quem sou. E, a isso, não estou disposta.
Espero que a Giovana tenha mais “sorte” do que eu no amor. Espero que toda mulher gorda que me lê nunca se deixe cair em relações assim. Queria dizer, ainda sim, que é melhor estar sozinha do que em relações abusivas ou ao lado de quem se envergonha de você. E sei disso porque já estive nas outras posições. Desejo, neste Dia dos Namorados, que ninguém se envergonhe de vocês. E desejo, sobretudo, que eu consiga seguir encontrando alegria na vida e na solidão - o papo de solitude é bonito nas redes sociais, mas, no dia a dia, é solidão mesmo. É que essa solidão seja melhor do que as companhias forçadas.
Desejo, sobretudo, que nesta data comercial, possamos encontrar, em nós mesmas, sentido para as demandas de amor que temos. E, realmente eu sinto muito por sermos mulheres gordas, não amadas.
As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.