Gil conta que ‘desistiu de desistir da carreira’
Cantor e compositor baiano explica que a canção "Palco", que abre a turnê "Tempo rei", foi composta com a intenção de se despedir das apresentações públicas
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Siga noBoa parte do seu núcleo familiar é artista ou trabalha com arte. Você se vê como um farol para eles?
A minha música é um instrumento de educação dos filhos. Eles sempre viveram em ambientes saturados de música, cresceram com isso. E muitos deles se dedicaram à música, os filhos e agora os netos. Isso é educação. Sempre gostei de utilizar o ambiente musical para ajudar na tarefa de educá-los e introduzi-los aos melhores modos de ver o mundo. A música sempre foi essa ferramenta para mim.
Toda vida tem seus próprios tempos, quanto mais uma longa como a sua. Quais são os pontos de inflexão, aqueles em que questionou sua própria carreira?
Foram momentos críticos em que pensei em abandonar a carreira. Quando eu fiz “Palco” eu achava que ia me despedir dos encontros com o público. A Cor do Som gravou (no álbum “Transe total", de 1980), depois resolvi gravar também (em “Luar”, de 1981) e aí desisti de desistir da carreira. Houve momentos, como eu diria, de cansaço, mas tudo isso foi sendo levado pela enxurrada da própria carreira, da própria vida. Sou músico, não tem muito jeito.
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Tempos de fúria como o que estamos vivendo são férteis para a criação artística?
Pertenço a uma geração egressa de um momento muito duro, que foi a ditadura militar, a luta pela redemocratização. Milton estava envolvido, Caetano, Chico, Edu, Elis Regina, Rita Lee, tanta gente que trabalhou essa adversidade pela qual ou o país. E isso foi um estímulo muito grande para a criatividade de tantos de nós. Em termos nacionais, os momentos críticos são sempre fomentadores dessa paixão pela música, pela intervenção musical que se desdobra em intervenção política, que se desdobra em solidariedade social. Sempre, e agora também. A música sempre foi um instrumento, uma ferramenta auxiliar no processo de sustentação da vida sociopolítica brasileira.
A maturidade artística dá quietude para o criador?
Dá uma coisa de missão cumprida, uma sensação de plenitude e, ao mesmo tempo, um esvaziamento. É a coisa do copo cheio, transbordante, que é também um fundo de copo vazio. São as duas coisas ao mesmo tempo. Existe um modo diferente de ser quando a gente fica velho.
As limitações físicas...
A principal é essa. O envelhecimento vai trazendo a necessidade de outra relação com as energias físicas, com a musculatura, com o funcionamento de todos os órgãos. Tudo isso tem que ser cuidado de forma diferente. A alimentação tem que ser mais cuidadosa, tem as restrições... Você não pode tomar aqueles porres homéricos que tomava quando era jovem.
Você ainda bebe?
Um pouquinho, moderadamente. Gosto de gin tônica.
Em maio foi lançado no Festival de Cannes o curta “Samba infinito”, de Leonardo Martinelli, no qual você fez um bibliotecário. Tem vontade de fazer outras coisas além da música?
Não tenho não. Escrever memórias, me aventurar, como Chico Buarque, na área do romance, ou do ensaio literário. Não tenho vontade de nada disso.
Está mais para Caymmi e ficar na rede?
Não é propriamente rede, não sou tão Caymmi assim. É mais o sofá, a cama.
Quando o tempo sobrar, vai ficar mais ao violão?
Já me dedico muito a ele na medida do tempo que tenho. Apesar de viajar muito, fazer muita coisa fora de casa, meu violão vive do meu lado, na minha cabeceira. Hoje mesmo já toquei. Levantei, tomei café, fiz minha ginástica e vim tocar meu violão, ler meu jornal. Ele faz parte da vida doméstica. O violão é o prato da cozinha.
Sua atuação política começou na música e, mais tarde, se institucionalizou com o mandato como vereador em Salvador (entre 1989 e 1992) e, posteriormente, como Ministro da Cultura (2003 a 2008), no governo Lula. Hoje, e ainda mais na semana em que estamos, como vê a política no Brasil?
Estava vendo na televisão os interrogatórios desse núcleo da suposta tentativa de golpe. Acompanho tudo: o noticiário político, a polarização, as dificuldades da relação entre os três poderes, as dificuldades do Executivo com o Legislativo, essa crítica crescente ao ativismo do Judiciário, que tem que fazer sua função e, muitas vezes, extrapolar a sua própria função e fazer intervenções mais politizadas. Enfim, e a crítica que vem disso, a adesão por parte de muitos da opinião pública e a contrariedade de outra parte. Sou um indivíduo, um cidadão, também parte dessa opinião pública.
Mas você, uma pessoa que sofreu com a ditadura, chegou a ser preso, teve que se exilar, como vê o seu país hoje?
Não vejo o Brasil muito diferente do resto do mundo. É um país de 500 anos, oriundo de uma colonização que não foi específica daqui, uma colonização europeia que dominou as Américas, especialmente a do Sul. E depois tempos mais modernos, com a chegada da República ao país e todas essas escaramuças históricas do ponto de vista da economia, a monocultura cafeeira e de cana-de-açúcar que depois virou indústria... É muito igual a todos os países que tiveram essa colonização. E hoje em dia fica cada vez mais parecido com os países da Europa, a luta para a superação da pobreza, pela adoção de um sistema onde a igualdade esteja um pouco maior do que a desigualdade. Mais recentemente, vejo os projetos de novas tiranias que estão surgindo aqui e ali, agora nos Estados Unidos. Acho que o Brasil não tem privilégio nenhum nesse campo.
Vê algum caminho para o Brasil?
Sim, nós temos. Temos uma cultura muito ampla, farta, aberta, mestiça em vários campos. Temos essa coisa da diversidade religiosa também, com várias formas de entender a divindade. Essas linguagens são típicas do Brasil e podem, potencialmente, ainda ter um papel importante na contribuição que o país pode dar para o mundo.
“TEMPO REI”
Show de Gilberto Gil. Neste sábado (14/6), às 20h, no Mineirão (Avenida Antônio Abrahão Caram, 1.001, Pampulha). Abertura dos portões: 17h. Ingressos disponíveis para os seguintes setores: cadeira superior laranja (a partir de R$ 65); cadeira superior roxa e vermelha (a partir de R$ 90); cadeira inferior laranja (a partir de R$ 115); pista comum (meia idoso, R$ 140 e inteira, R$ 280); camarote (R$ 1,5 mil). À venda no site e na loja Eventim, no Shopping 5ª Avenida (Rua Alagoas, 1.314 - Savassi).